DURANTE A TARDE DISTANTE DE TODO O RESTO



Eu sou fissurado por café. Melhor ainda na companhia de Leila. Ela também adora e me convidou para um cappuccino durante a tarde, em meio ao expediente. 

Fugimos e fomos tomar o café para esvaziar a cabeça. Ficar distante ao menos por algumas horas das frases prontas de toda aquela gente que vive andando em círculos caóticos de narcisismo e submissão excessiva. 


Terminamos e ficamos leves. Não voltamos ao trabalho. Se as cabeças vazias significavam a casa do diabo, era lá que queríamos continuar.

FALTA DE ALTERNATIVAS DIANTE DA FALTA DE PERSPECTIVAS



Eu só queria me proteger da tamanha falta de personalidade que exalava daquelas pessoas que camuflavam suas frustrações com falsas alegrias, alimentadas diariamente com porções de sorrisos tão sinceros quanto um vendedor de carros ou o gerente de seus bancos.

Mas como eu não sabia como conseguir tal proteção, olhei-me no espelho, caprichei na caricatura e fui me juntar a eles.

VONTADE DIVINA


Eu não a via há anos, então perguntei para ela se estava saindo com alguém. Ela respondeu que estava sempre na companhia de Deus.

- E onde ele está agora? – perguntei. – Foi pegar um sorvete?

- A presença de nosso Deus é espiritual. Ele está em tudo e em todos.

- Em mim também? – perguntei

- Se você quiser, ele estará.

- Se ele está em tudo, quando você está tomando banho, ele espia? – perguntei, tentando em vão trazer a boa e velha Laura de volta.

Ela olhou para baixo e disse que precisava ir. Desculpei-me e perguntei pela sua mãe.

- Ela faleceu há um ano. Mas Deus quis assim – falou naturalmente.

- E você está trabalhando com aqueles projetos? Você era a melhor arquiteta que conheci.

- Fui demitida – ela disse.

- Sim, e Deus quis assim também, imagino?

- Acredito que se aconteceu, provavelmente foi vontade dele.

Como era de se esperar ela me convidou para ir a um culto, pois disse notar que eu estava com certo vazio na alma, e que talvez eu precisasse ouvir a voz do senhor e me aproximar mais do amor divino para encontrar a graça.

- Como perder a mãe e o emprego, por exemplo? - ironizei.

Ela sorriu inocentemente e colocou a mão em meu ombro e se despediu. Quando me distanciei ouvi um tiro e um homem passou correndo por mim. Olhei para trás e vi Laura caída no chão. Formava-se o circulo de curiosos sedentos por uma tragédia para quebrar suas rotinas entediantes. Fotos com celulares de todos os ângulos. Correria. Espanto. O consumo do trágico. Mas provavelmente Deus quis assim.

JORNADA ESPIRITUAL


Há tempos ela estava numas em que tudo era lindo, e que queria viver apenas de amor e o caralho. Pendurou em seu pescoço uns galhos com cordões e penas que chamava de apanhador de sonhos. Com certa dificuldade, quase chorando, apareceu apenas com uma bolsa e me disse que precisaria me deixar, pois seguiria junto com um grupo de amigos pseudohippies-fumo-maconha-até-ficar-burro em uma jornada de autoconhecimento.

Ok – eu disse.

Após ela sair me sentei pelado na varanda, bebendo e pensando em quantos dias ela voltaria chorando e pedindo desculpas por mais uma vez acreditar que encontraria apoio para sua crise existencial nas palavras de terceiros ao invés de considerar as suas próprias.

UM DRINK NO INFERNO


Gosto de mulheres com calças de couro. E quando eu a vi entrando no bar, sozinha, dentro daquela justíssima calça com uma blusinha folgada que parecia estar pendurada apenas nos seios e a barriga à mostra, eu tive uma arritmia cardíaca e fui cumprimentá-la.

- Adoro mulheres com calças de couro – falei. Eu já estava bastante alto.

Ela ficou muda bebendo seu drink e me encarou.

- Não é de couro, é látex – ronronou. – Como as roupas de sadomasô.

Uma breve arritmia.

O que está bebendo?- perguntei.

- Chama-se Devil’s Kiss – disse e me ofereceu um gole.

Era uma das melhores bebidas que eu já havia tomado. Comentei que o beijo de verdade do diabo devia ser ainda melhor. Ela então disse que era filha dele e me ofereceu um beijo. Eu sorri e a beijei. Quase queimei a boca e dei um salto para trás assustado.

- Eu te avisei que sou filha do diabo – ela sorriu.

Saímos dali e fomos para sua casa. Havia uma iluminação toda vermelha com pentagramas pela parede e velas espalhadas pela sala toda. A porta se fechou sozinha atrás de nós.

Ela começou a me beijar e senti uma dormência pelo corpo e não consegui me mover. Ela me deixou no chão. Tirou minha roupa, montou sobre mim e disse que eu podia fazer um pedido.

- Quero me casar com você – disse eu.

Ela voltou a me beijar e senti meu coração acelerando muito e um calor do caralho. Então apaguei.

Só lembro-me de ter acordado numa enorme cama, com uma energia de um garoto de 15 anos, mas meu coração não batia mais. Ela apareceu no quarto sorrindo.

- Eu aceito – falou.

A FIM DE EVITAR QUE EU MORRESSE TAMBÉM


A incoerência entre os pensamentos e os argumentos de cada um me fez excluir qualquer possibilidade de interação. Olhava em volta e só enxergava uma falta de perspectiva e um adestramento caótico formado por opiniões vazias entre sorrisos mortos de gente morta em seus trabalhos mortos.

Mas como era minha primeira festa com o pessoal do banco, resolvi ficar. Então descolei  uma garrafa de uísque e levei para o banheiro a fim de evitar que eu morresse também.

QUESTÃO DE AUTOESTIMA


Apesar de eu ser feio, ganhar pouco com um trabalho de merda, eu sempre tive a mulher que eu quisesse. Era uma questão de autoestima que eu havia aprendido em uma palestra. E usei isso com a Lila. Ela ficou me olhando a noite inteira. Fui até lá e ofereci uma bebida e menti e elogiei e rimos e fizemos piadinhas sexuais e fomos para o quarto do hotel.

Ela trancou a porta e disse que estava fugindo da polícia e ficou espiando pela janela o tempo todo. Tentei me aproximar e ela recusou.

- Cara, você acha mesmo que eu iria trepar com você? – ela disse sem me olhar, colocando por água a baixo tudo o que eu havia aprendido com o palestrante. – Eu só preciso dar um tempo e sumir daqui o mais rápido possível.

Fui até minha gaveta e liguei um gravador que eu carregava comigo e perguntei para ela o que havia feito.

- Bem, acho que não tenho com o que me preocupar com um cara como você. Sabe o dono da Melvins? Eu o matei – ela disse e começou a rir.

Enquanto ela olhava para fora eu a algemei.

- Você está presa, gatinha – falei ao seu ouvido mostrando meu distintivo da polícia. – A não ser que você tenha algo para mim.

- Quanto? – perguntou.

- Metade da grana – disse eu.

No outro dia liguei para meu chefe e pedi demissão. Minha autoestima estava recuperada.