O JANTAR



Cheguei no horário combinado. Ela estava usando uma calça de couro e uma camiseta dos Rolling Stones. Batom vermelho. Levemente bêbada. Eu estava bastante bêbado.

- Você é pontual – falou me beijando.

Ela disse que o jantar estava no forno. Enquanto isso, bebemos vinho e conversamos sobre coisas que as pessoas conversam e depois não lembram mais, pois não queriam estar conversando sobre tais coisas. Matando o tempo. Vivemos para matar o tempo, até que ele nos mate.

- Hum... o cheiro tá muito bom – elogiei. E realmente estava. Nunca havia sentido nada igual.

Ela me beijou e me levou para cozinha pela mão. Servi outra taça de vinho e me sentei. Ela colocou o jantar na mesa. 

- Que merda é essa? – perguntei espantado ao ver uma cabeça humana assada em minha frente.

- É meu ex-namorado. Cleber.

Ela abriu um tampão na careca e provou uma fatia do cérebro. 

- Está ótimo – falou, passando a língua nos lábios.

Colocou um pedaço no meu prato. Realmente era a melhor coisa que eu já tinha comido em minha vida. Talvez por estar bêbado. 

Após o jantar, fomos para cama. Sentia-me meio tonto. Dopado mesmo. Enxergava embaçado e mal ouvi quando ela perguntou se eu queria ser o seu namorado. Lembro que respondi que sim e adormeci.

DESCONFIANÇA


- O que ele tem te receitado agora? – perguntei pra Lia.

- Rivotril. E pra você?

- Sertralina de sempre e agora acrescentou um antipsicótico. Rispiridona.

- Antipsicótico?

- Acho que vai me fazer parar de pensar demais. E ter menos desconfiança.

- Você tem muita desconfiança?

- Não chamaria de desconfiança, mas certezas de coisas que eu sei que estão acontecendo, mas como não tenho provas, dizem que é tudo neurose, desconfiança etc.

- Que tipo de coisas?

- Nada não, deixa quieto.

- Eu sou sua amiga, pode se abrir.

- Eu... bem... sabe o Claudião? Acho que ele que matou a mulher.

Lia deu uma risada.

- Eu não disse, porra. Por isso não ia falar.

- Ai, desculpa, mas de onde você tirou isso? Você contou para o médico?

- Sim. Disse que desconfiava que um amigo fosse assassino e que havia pessoas conspirando contra mim. Foi quando me receitou a primeira vez. 2 mg por dia. Acho que ele está envolvido.

Lia pareceu nervosa e acendeu um cigarro.

- Quando você tem consulta de novo? – me perguntou, enquanto guardava o isqueiro.

- Segunda vou lá. Mas acho que vou trocar de médico depois.

Terminamos nossas bebidas e nos despedimos.

Quando entrei na sala do médico na segunda, ele trancou a porta. Nunca trancava. Então de outra sala saíram Lia e Claudião sorrindo. Antes que eles fizessem algo, puxei a minha arma – eu havia desconfiado deles e a trouxera – e atirei nos dois. Apontei para o doutor. Ele ficou sentado com as pernas cruzadas e tentou pedir que eu me acalmasse, pois eu estava apenas tendo um ataque nervoso. Atirei. Recolhi algumas amostras grátis do armário e fui para casa procurar outro médico.

SER O PRIMEIRO



Em cada roda de conversa eu percebia que cada um queria ter mais dinheiro do que os outros. Falar melhor do que os outros. Ter o melhor carro do que os dos outros. Ler mais do que os outros. Ter viajado mais do que os outros. Ter ido a mais festas. Ter o cão com mais pedigree do que os outros. Ter mais sapatos do que os outros. Passado as férias em Cancun antes do que os outros. Ter empregadas que cozinhassem as melhores costeletas de porco do que a dos outros.

Notei que eu precisava tomar uma decisão drástica em minha vida e almejar mais conquistas e me tornar um cara melhor. Sentei-me e liguei para Meg para contar sobre meu plano de mudança. Ela sorriu no telefone e disse - com aquela voz macia - que eu já era o melhor cara e pediu para eu voltar para casa, pois eu estava me contaminando pelo egocentrismo alheio. Olhei em volta com mais atenção e enxerguei dezenas de rostos de plástico anencéfalos que formavam um espetáculo de exibicionismo.

Decidi que o que eu queria era apenas sair dali antes do que os outros

FOMOS PARA O CASSINO FICAR RICOS



Eu estava concentrado em minha bebida quando ela surgiu do nada, intimidadora e mais linda do que nunca.

- Tem que ser hoje – falou direto sem cumprimentar.

- De hoje não passa, pode ficar tranquila. Trouxe a grana?

- Você disse isso semana passada. O dinheiro está bem guardado.

- Não vai se despedir dela antes? Afinal é sua mãe – brinquei.

Ela nunca foi minha mãe. Apenas uma vadia que se aproveitou do meu pai gastando todo seu dinheiro com jogos e que vai me pagar pela morte dele.

À noite ela apareceu em minha casa para efetuar o pagamento. Eu havia dito ter terminado o serviço. Após ela me mostrar o dinheiro, assoviei e sua mãe apareceu na sala apontando uma arma para ela, que tentou me convencer que eu também estava sendo enganado e que seria morto assim como o seu pai.

- Fui eu quem matou o seu pai – revelei, me abraçando em sua mãe. 

Ela acendeu um cigarro tentando não demonstrar medo e encarou sua mãe.

- Atira logo – disse ela.

Sua mãe atirou. Pegamos o dinheiro e fomos para o cassino ficar ricos.

TENTATIVAS FRACASSADAS DE IGNORAR O FRACASSO


Cada minuto que passava tinha mais certeza de ter feito a escolha errada. Então se afastou, acendeu um cigarro e desviou seus pensamentos para fora daquele lugar insano onde todos corriam atrás de algo que os fizessem mais humanos e menos inseguros, mesmo sabendo que isso era impossível

DURANTE A MADRUGADA



Eram três da manhã quando o telefone tocou. Sempre as tragédias acontecem durante a madrugada, por que nunca às quatro da tarde, quando estamos dentro de um entediante trabalho?

Avisaram-me que minha esposa havia sofrido um grave acidente de carro.

Eva me disse que havia viajado a trabalho, porém o acidente ocorrera em nossa cidade. Fui para o hospital.

Me identifiquei na recepção e me pediram para aguardar. Havia pessoas gemendo, vomitando, chorando, rindo, correndo. Pensei que o hospital pode ser uma metáfora da nossa sociedade, onde todos se apoiam em um deus sempre quando estão diante do desespero e do inevitável. Me chamaram.

- Sua esposa não resistiu – falou o médico.

- Escute, havia mais alguém com ela?

Me indicou o quarto onde o cara que estava com ela repousava. O provável amante da minha mulher. Havia sofrido apenas alguns arranhões. Era bonito o filha da da puta. O acordei.

- Ei – eu disse. - Prazer. Eu sou o marido da mulher que você matou. 

Ele se desculpou dizendo que foi um acidente e coisa e tal. Peguei um travesseiro e afundei na sua cara. Ele tentou resistir se debatendo por alguns segundos, como um animal desesperado durante o abate, mas apagou rápido.

Eram 4:30. Ainda um bom horário para acordar alguém com uma má notícia

CAFÉ DA MANHÃ DE SÁBADO


Aos sábados gosto de tomar café da manhã na padaria. Uma xícara de cappuccino com uma torrada com queijo cheddar. Luma faz as melhores torradas. E tem as melhores pernas.

- Você tem as melhores pernas, Luma - eu dizia. Todos os sábados eu falava isso. Ela apenas sorria e me servia o café. Eu adorava nosso ritual.

Peguei o jornal para ler enquanto esperava a torrada e um homem entrou e anunciou o assalto. O encarei e ele disse para eu olhar para baixo. Segui lendo o jornal enquanto Luma entregava o dinheiro ao ladrão que elogiou as pernas dela também. Então ele guardou o dinheiro e a agarrou pela cintura e levantou sua saia. Ela tentou resistir, mas ele colocou a arma na sua boca.

Quando ele começou a tirar o cinto de sua calça com Luma inclinada sobre o balcão, eu agarrei a arma de sua mão e o encostei na parede. Atirei bem entre suas pernas. Ele caiu chorando e sangrando com o pau estourado.

Ligamos para a ambulância. Minha torrada havia queimada. Pedi outra, desta vez com ovo junto.

- Quer mais café? – Luma perguntou.

Pedi um conhaque no lugar. O homem chorava sentado no chão. Luma e eu nos beijamos pela primeira vez. Desde então não precisei mais pagar pelo meu café da manhã dos sábados.

DURANTE A TARDE DISTANTE DE TODO O RESTO



Eu sou fissurado por café. Melhor ainda na companhia de Leila. Ela também adora e me convidou para um cappuccino durante a tarde, em meio ao expediente. 

Fugimos e fomos tomar o café para esvaziar a cabeça. Ficar distante ao menos por algumas horas das frases prontas de toda aquela gente que vive andando em círculos caóticos de narcisismo e submissão excessiva. 


Terminamos e ficamos leves. Não voltamos ao trabalho. Se as cabeças vazias significavam a casa do diabo, era lá que queríamos continuar.

FALTA DE ALTERNATIVAS DIANTE DA FALTA DE PERSPECTIVAS



Eu só queria me proteger da tamanha falta de personalidade que exalava daquelas pessoas que camuflavam suas frustrações com falsas alegrias, alimentadas diariamente com porções de sorrisos tão sinceros quanto um vendedor de carros ou o gerente de seus bancos.

Mas como eu não sabia como conseguir tal proteção, olhei-me no espelho, caprichei na caricatura e fui me juntar a eles.

VONTADE DIVINA


Eu não a via há anos, então perguntei para ela se estava saindo com alguém. Ela respondeu que estava sempre na companhia de Deus.

- E onde ele está agora? – perguntei. – Foi pegar um sorvete?

- A presença de nosso Deus é espiritual. Ele está em tudo e em todos.

- Em mim também? – perguntei

- Se você quiser, ele estará.

- Se ele está em tudo, quando você está tomando banho, ele espia? – perguntei, tentando em vão trazer a boa e velha Laura de volta.

Ela olhou para baixo e disse que precisava ir. Desculpei-me e perguntei pela sua mãe.

- Ela faleceu há um ano. Mas Deus quis assim – falou naturalmente.

- E você está trabalhando com aqueles projetos? Você era a melhor arquiteta que conheci.

- Fui demitida – ela disse.

- Sim, e Deus quis assim também, imagino?

- Acredito que se aconteceu, provavelmente foi vontade dele.

Como era de se esperar ela me convidou para ir a um culto, pois disse notar que eu estava com certo vazio na alma, e que talvez eu precisasse ouvir a voz do senhor e me aproximar mais do amor divino para encontrar a graça.

- Como perder a mãe e o emprego, por exemplo? - ironizei.

Ela sorriu inocentemente e colocou a mão em meu ombro e se despediu. Quando me distanciei ouvi um tiro e um homem passou correndo por mim. Olhei para trás e vi Laura caída no chão. Formava-se o circulo de curiosos sedentos por uma tragédia para quebrar suas rotinas entediantes. Fotos com celulares de todos os ângulos. Correria. Espanto. O consumo do trágico. Mas provavelmente Deus quis assim.

JORNADA ESPIRITUAL


Há tempos ela estava numas em que tudo era lindo, e que queria viver apenas de amor e o caralho. Pendurou em seu pescoço uns galhos com cordões e penas que chamava de apanhador de sonhos. Com certa dificuldade, quase chorando, apareceu apenas com uma bolsa e me disse que precisaria me deixar, pois seguiria junto com um grupo de amigos pseudohippies-fumo-maconha-até-ficar-burro em uma jornada de autoconhecimento.

Ok – eu disse.

Após ela sair me sentei pelado na varanda, bebendo e pensando em quantos dias ela voltaria chorando e pedindo desculpas por mais uma vez acreditar que encontraria apoio para sua crise existencial nas palavras de terceiros ao invés de considerar as suas próprias.

UM DRINK NO INFERNO


Gosto de mulheres com calças de couro. E quando eu a vi entrando no bar, sozinha, dentro daquela justíssima calça com uma blusinha folgada que parecia estar pendurada apenas nos seios e a barriga à mostra, eu tive uma arritmia cardíaca e fui cumprimentá-la.

- Adoro mulheres com calças de couro – falei. Eu já estava bastante alto.

Ela ficou muda bebendo seu drink e me encarou.

- Não é de couro, é látex – ronronou. – Como as roupas de sadomasô.

Uma breve arritmia.

O que está bebendo?- perguntei.

- Chama-se Devil’s Kiss – disse e me ofereceu um gole.

Era uma das melhores bebidas que eu já havia tomado. Comentei que o beijo de verdade do diabo devia ser ainda melhor. Ela então disse que era filha dele e me ofereceu um beijo. Eu sorri e a beijei. Quase queimei a boca e dei um salto para trás assustado.

- Eu te avisei que sou filha do diabo – ela sorriu.

Saímos dali e fomos para sua casa. Havia uma iluminação toda vermelha com pentagramas pela parede e velas espalhadas pela sala toda. A porta se fechou sozinha atrás de nós.

Ela começou a me beijar e senti uma dormência pelo corpo e não consegui me mover. Ela me deixou no chão. Tirou minha roupa, montou sobre mim e disse que eu podia fazer um pedido.

- Quero me casar com você – disse eu.

Ela voltou a me beijar e senti meu coração acelerando muito e um calor do caralho. Então apaguei.

Só lembro-me de ter acordado numa enorme cama, com uma energia de um garoto de 15 anos, mas meu coração não batia mais. Ela apareceu no quarto sorrindo.

- Eu aceito – falou.

A FIM DE EVITAR QUE EU MORRESSE TAMBÉM


A incoerência entre os pensamentos e os argumentos de cada um me fez excluir qualquer possibilidade de interação. Olhava em volta e só enxergava uma falta de perspectiva e um adestramento caótico formado por opiniões vazias entre sorrisos mortos de gente morta em seus trabalhos mortos.

Mas como era minha primeira festa com o pessoal do banco, resolvi ficar. Então descolei  uma garrafa de uísque e levei para o banheiro a fim de evitar que eu morresse também.

QUESTÃO DE AUTOESTIMA


Apesar de eu ser feio, ganhar pouco com um trabalho de merda, eu sempre tive a mulher que eu quisesse. Era uma questão de autoestima que eu havia aprendido em uma palestra. E usei isso com a Lila. Ela ficou me olhando a noite inteira. Fui até lá e ofereci uma bebida e menti e elogiei e rimos e fizemos piadinhas sexuais e fomos para o quarto do hotel.

Ela trancou a porta e disse que estava fugindo da polícia e ficou espiando pela janela o tempo todo. Tentei me aproximar e ela recusou.

- Cara, você acha mesmo que eu iria trepar com você? – ela disse sem me olhar, colocando por água a baixo tudo o que eu havia aprendido com o palestrante. – Eu só preciso dar um tempo e sumir daqui o mais rápido possível.

Fui até minha gaveta e liguei um gravador que eu carregava comigo e perguntei para ela o que havia feito.

- Bem, acho que não tenho com o que me preocupar com um cara como você. Sabe o dono da Melvins? Eu o matei – ela disse e começou a rir.

Enquanto ela olhava para fora eu a algemei.

- Você está presa, gatinha – falei ao seu ouvido mostrando meu distintivo da polícia. – A não ser que você tenha algo para mim.

- Quanto? – perguntou.

- Metade da grana – disse eu.

No outro dia liguei para meu chefe e pedi demissão. Minha autoestima estava recuperada.

ENTRE IMPROVISOS



Mel estava se deliciando com minha coleção de discos. Como sempre, ficava admirando um a um demoradamente. E enquanto ouvíamos The Doors ela perguntou qual música eu escolheria se fosse me matar.

- Deveria ser uma pegada meio Jazzística, eu acho. Sabe? Longos improvisos e tal.

- Mas o suicídio não é um improviso – ela falou tirando uma faca da bolsa e passou devagar entre os seios.

Ela aumentou o volume e tirou a blusa. 

- E o assassinato? – perguntei.

Ela sentou-se no meu colo e colocou a faca em meu pescoço e me beijou. 

- Também não. Eu te dou a faca. Você me mata – me deu a faca. - Tudo planejado, sem nada de improviso também – falou levantando-se e indo até o quarto.

- As pessoas não fazem nada de improviso. Somos todos uns previsíveis que caminham uns nos rastros dos outros e compram as mesmas roupas e mesmos carros e mesmos cachorros e reclamam sobre as mesmas coisas – falei e logo ouvi um tiro.

Corri para o quarto e quanto entrei Mel pulou em cima de mim segurando a arma e dando a sua gargalhada rouca que eu adorava. 

- Isso foi um improviso – disse ala.

O disco havia parado de tocar. Trocamos por um de Jazz e nos deitamos rindo das previsibilidades alheias.

VERDADEIRAS PERSONALIDADES


Era difícil dizer quem estava mais nervoso. Pareciam querer devorar uns aos outros. Aquela típica reação humana que arrasta as pessoas para suas verdadeiras personalidades. Apesar de ser engraçado ver o espetáculo, ela decidiu sair daquele lugar o mais rápido possível. Não queria ter que conhecer a sua verdadeira personalidade.

INTERVENÇÕES INVOLUNTÁRIAS



- Antes você gostava mais de conversar. Falava, falava e falava. Nossa, confesso que às vezes eu ficava cansada de tanto que falava. Mas ao mesmo tempo sinto falta de quando você contava todos os detalhes de seu dia. Sabe? até que era bom te ouvir. Você contava tudinho...ah, como falava!...explicava sobre cada pessoa chata que tinha que aturar e como sentia-se bem quando me via e como queria largar tudo e...

- Cala a boca.

UMA HISTÓRIA SUJA II


Com certeza eu havia acordado com a pior ressaca dos últimos anos. A primeira coisa que me veio à cabeça foi se a mulher que me agarrou no banheiro público havia morrido lá.

Tomei um banho e abri uma cerveja. Eu estava com todo o dinheiro da mulher na minha frente,  na mesa da cozinha. Havia realmente muita grana. Se ela não estiver morta, acho que ela até preferiria.

Tocaram a companhia. Quando abri a porta, uma gorda com a roupa suja e cheirando a urina estava diante de mim. Era ela.

- Como tu chegou aqui? – perguntei para minha amante do banheiro.

- Não interessa. Quero minha grana – ela falou enquanto entrava no meu apartamento. Ela deve ter acordado e me seguido na noite anterior.

- Tu me agarrou e disse que me pagaria para ficar contigo – reclamei.

- Disse que EU pagaria, não que tu poderia pegar minha grana enquanto eu estava desmaiada.

Ela começou a recolher o dinheiro da mesa. Eu precisava daquela grana também. Pensei em matar ela, mas desisti e a agarrei beijando seu pescoço azedo.

- Então agora você me paga? – perguntei ao seu ouvido.

Ela virou-se e me beijou. Senti um gosto de vomito, mas já estava me acostumando àquilo. Então fomos para o quarto. Novamente ela terminou desmaiada. Dei uns tapas na sua cara para acordá-la.

- Bem, dessa vez não vou pegar sua grana, mas você me deve.

Ela vestiu sua roupa imunda e me deu a metade do dinheiro e foi embora sem falar nada.
Terminei minha cerveja diante da janela. Fazia um bonito dia de sábado, com sol, céu azul, e as pessoas conversavam com seus vizinhos na calçada enquanto seus cachorros cheiravam o traseiro  um do outro. Voltei para cama.

UMA HISTÓRIA SUJA


Eu estava há horas bebendo. Mal parava em pé. Então fui ao banheiro público e encontrei uma senhora mais bêbada do que eu. Estava limpando o rosto na pia coberta de vômito. Quando ela me viu escorregou e caiu de bunda no chão molhado, deixando escapar os últimos sinais de dignidade que um ser humano possa ter.

- Este é o banheiro dos homens – falei indo direto ao mictório.

Ela levantou-se e me abraçou chorando, fazendo com que eu mijasse um pouco nas calças.

- Fique comigo. Eu te pago.

Pedi para ela mostrar o dinheiro, e ela abriu a bolsa e deixou aparecer muitas notas. Então entramos em umas das portas onde ficam os vasos e nos trancamos. Senti-me enjoado, mas ainda assim era melhor do que muitas coisas da vida, como levantar às seis da manhã, almoçar aos domingos com parentes invisíveis ou levar cachorrinhos para cagarem.

Logo em seguida ela adormeceu com a cabeça na privada. Recolhi todo o dinheiro da bolsa e fui para casa tomar um banho.

O DESPACHO


Quando resolvi pegar a cachaça que estava junto de uma galinha morta com pipocas em uma esquina meu amigo quase me bateu.

- Tu é louco. Isso é um despacho. Coisa de batuque.

Coloquei um punhado de pipoca na boca e ofereci um pouco a ele, que deu um tapa na minha mão.

- Tu vai se arrepender de comer isso. Essas coisas são enfeitiçadas.

Ele até se despediu de mim ali mesmo e foi embora sozinho. Eu passei no mercado para comprar limões para tomar com minha cachaça amaldiçoada em casa.

Quando cheguei, tomei um banho, preparei um drink e liguei para casa de meu amigo. Sua mulher atendeu chorando.  Disse que ele acabara de chegar e teve um infarto fulminante. Ela estava esperando a ambulância.

- Estou indo para aí – falei.

Liguei para minha macumbeira.

- Então? – perguntou a velha com uma voz rouca de quem fuma cinco carteiras de cigarro por dia.

- Sua velha safada. Deu mesmo certo o trabalho que você preparou – agradeci. – Ah, e não precisava gastar com uma cachaça tão cara, ainda bem que eu peguei ela.

- Você tomou?  - perguntou assustada.

Quando fui responder senti minha garganta fechando e não consegui falar. Meus olhos pareciam que iam saltar da cara. Tentei discar para a emergência, mas todo meu corpo estava adormecido.


Desabei e fiquei congelado olhando para o teto.

REPETIÇÕES


Não queria mais repetir para as mesmas pessoas as mesmas palavras sobre os mesmos assuntos que os levariam aos mesmos lugares para serem alimentados os mesmo conflitos.

Por isso decidiu ficar apenas com os mesmos pensamentos.

SEQUESTRO


Eu estava sem dinheiro, mas não queria trabalhar, pois também não queria ter que ver as pessoas dentro de suas cascas vencidas que habitam os escritórios. O caso é que eu precisava arrumar uma grana. Então pensei em assalto. Mas não teria coragem. Liguei para Linda.

- Preciso de um favor? – falei

Ela desligou o telefone. Liguei novamente.

- Tu ainda não me pagou o dinheiro que te emprestei, e quer mais? - atendeu.

- É sobre isso que quero falar. Tenho uma maneira de conseguir a tua grana, mas preciso de uma ajuda.

Então combinei um horário e fui até sua casa. Eu adorava ir lá. Era uma casa enorme, e fizemos muitas festas lá. Linda era muito rica. Ela tinha uma piscina com um bar no centro onde os empregados faziam todo tipo de drink que se quisesse. 

- Por que não arruma um emprego? – perguntou assim que eu cheguei.

Beijei sua testa e pedi um uísque que ela mandou uma empregada trazer. 

- Vamos forjar um sequestro – comecei.

Silêncio.

- Forjar o seu sequestro. Eu peço a recompensa pro seu pai. Pago a tua grana, mais 20% e não precisarei mais te pedir nada - continuei.

- Ela deu uma gargalhada.

Expliquei os detalhes de como faria, do cativeiro, local da entrega da grana. Ela me olhou com uma cara de pena, como se estivesse diante de um louco e perguntou de quanto eu precisava. Respondi e ela assinou um cheque e disse que eu não precisaria pagá-la.

Pensei que seria mais demorado. Mas acho que ela realmente acreditou que eu estivesse falando sério ou enlouquecido.

UM CASAL À MODA ANTIGA


Durante nosso jantar ela elogiou meu relógio de ouro. Era um Rolex igual aos que os gângsters usavam nos filmes. Eu sempre quis ser um gângster.

- É do cara que eu matei.

Ela quase se engasgou com o vinho e começou a rir.

Eu fiquei um pouco sem graça e completei meu copo.

- O matei ontem. Vi ele na rua quando eu estava saindo do barbeiro. O relógio brilhava. Esperei ele dobrar uma esquina sem movimento. Encostei a arma nele e disse para ficar quieto. Fomos até um beco e coloquei um saco em sua cabeça. Eu já tinha visto isso num filme de gângster.

Ela me encarou séria e foi pegando sua bolsa.

- Este colar também é de uma mulher que matei – disse ela com brilho nos olhos.

Saímos do restaurante e seguimos um casal até seu carro. Enquanto eu colocava o saco na cabeça do homem, minha companheira usou um canivete na mulher. 

Peguei as chaves do cara e saímos com o seu carro. Era uma réplica de um Cadillac, igual ao dos gângsters. Então dirigimos até a praia para ver o amanhecer à beira mar.

OFERENDAS



Eu estava sozinho tomando uma cerveja e pensando em nada. Absolutamente à toa. Por mim eu viveria pensando em nada, fazendo nada, e, principalmente, ouvindo nada. No caso, ouvir nada das pessoas. Não entendo o motivo de tanta conversa, tanta tentativa de convencimento e posicionamento diante dos outros. Mas então eu estava ali quando aquele senhor chorando sentou - sem pedir licença - na minha mesa.

- O que você espera da sua vida? Pensa que vai durar para sempre? – perguntou sem mais nem menos o estranho.

- Não espero nada, e o senhor?

O homem enxugou as lágrimas.

- É disso que eu estou falando. TODOS vocês pensam que serão aceitos pelo nosso salvador sem fazer nenhum esforço para isso.

- E o que eu preciso fazer para ser aceito por esse salvador? Como é mesmo o nome? Deus?

- Desculpe, pai! – falou o homem com os olhos fechados. – Não ouse falar o nome dele em vão outra vez.

- De quem? De Deus?

O velho me segurou pelo pescoço e cuspiu na minha cara. E foi um cuspe de dar inveja. Fiquei imóvel olhando para sua cara de perdedor. Então peguei a garrafa de cerveja e quebrei em sua cabeça. Cerveja com sangue escorreram pelo seu rosto. Ele começou a rezar baixinho. Levantou-se e foi embora.

Paguei minha cerveja e quando estava indo para o estacionamento encontrei dezenas de pessoas com cruzes nas mãos me encarando e gritando “satanás”.

Fui caminhando em direção ao carro me sentindo meio rockstar, sendo ovacionado pela plateia enlouquecida. Entrei no carro, pus meu óculos escuro e sai abanando para todos e mandando beijos. Percebi que havia uma garota meio freira entre eles que parecia não estar muito à vontade. Meio deslocada. Parei ao seu lado.

- Eu sou satanás. Eu sou o teu verdadeiro salvador – falei com meu melhor tom de profeta.

Ela atirou sua cruz no chão e entrou no meu carro. Passei no mercado para comprarmos umas bebidas e fomos para minha casa fazer oferendas.

A RUIVA E SUA AMIGA


Eu estava parado no balcão com minha cerveja quando aquela ruiva se aproximou. Simplesmente ficou ali parada ao meu lado com uma expressão dura como se estivesse tensa. Por um segundo pensei que fosse doente mental. Ela disse apenas oi. Estava com os olhos vidrados.

- Oi – devolvi.


Ela continuou ali parada. Uns amigos chegaram e começamos a conversar, assim pude me livrar dela e fomos para outra parte do bar.

- Quem era aquele zumbizinho? – me perguntaram.

- Não faço ideia. Eu estava ali parado, e, de repente, ela apareceu do meu lado como um fantasma.

Enquanto estávamos rindo da esquisitice da garota ruiva, a própria aparece novamente. Imóvel. Alguns risos abafados. Dessa vez o Murilo resolveu interagir. Mas a moça parecia não ouvir ele e ficou me encarando.

- Oi – falei outra vez.

Ela se aproximou e me beijou. Nada mal para uma semimorta, pensei. Ela me pegou pela mão e me levou para o seu carro. Quando entramos vi que havia um corpo de uma garota nua na porra do banco traseiro. As portas estavam travadas. Ela me mandou tirar a roupa e ir para o banco junto com o defunto. Coloquei o corpo sentado e me abracei a ele. A primeira vez que a ruiva sorriu.

Ela pegou uma máquina fotográfica e começou a tirar fotos minha e da minha companheira. Quando eu pensava que não ia mais acabar ela tirou algumas notas de cem do porta-luvas e me entregou. Me vesti e voltei para o bar.

- E aí, pegou a morta? – debocharam meus amigos.

- Peguei.

BOBAGENS


Cada um procurava fazer o seu melhor olhar de preocupação possível. Todos usavam a velha técnica de franzir a testa enquanto ouviam cada bobagem que saia de sua boca. Os mais experientes seguravam o queixo enquanto moviam a cabeça de maneira afirmativa. E assim todos escancaravam a submissa vulgaridade de suas personalidades.

QUATRO DOSES DE UÍSQUE


Era preciso coragem. E como eu sempre faço quando preciso dela, entrei no bar e tomei quatro doses de uísque. Então liguei para minha ainda esposa.

- O que você quer? – gritou logo que atendeu.

Desliguei. Precisava de mais coragem. Por isso tomei mais quatro doses e retornei.

- Qual é o seu pro-ble-ma? – disse ela.

- Olha só. Estou ligando na paz. Queria apenas dizer que estou de acordo com o divórcio. Tem como me encontrar?

Marcamos no apartamento que eu estava alugando. 

Quando ela tocou a campainha eu abri a porta já apontando a arma. Ela não demonstrou nenhuma reação e entrou sem nem me olhar e sentou-se no sofá, cruzando aquelas pernas que já foram minhas.

- Abaixe essa merda e vamos direto ao assunto.

Ela sempre conseguia fazer aquilo. Não demonstrava seus medos. Algumas pessoas são especialistas em esconder seus medos, e com isso conseguem intimidar quem quiser. Esse é o grande truque do ser humano.

Abaixei a arma, derrotado, e comecei a chorar bêbado. Então coloquei a arma na minha boca. Nenhuma reação dela. Engatilhei.

- Atira logo – disse ela. – Já estou ficando excitada.

Comecei a tremer e ela tirou a arma da minha mão. Deixou apenas uma bala no tambor. Girou, apontou para sua cabeça e disparou. Nada.

- Bem, agora é sua vez.

Girei o tambor, engatilhei apontando para minha cabeça. Na hora de disparar virei a arma para ela. Ela voou para o sofá com o impacto e um furo bem no meio da testa. 

Sai para tomar quatro doses de uísque. Eu havia aprendido o truque.

GENTE FEIA


Eu nunca gostei de gente feia. Sim, apesar de eu também ser muito feio. Minha família toda era feia. Meus pais. Meus irmãos. Minha esposa. O mais feio de todos era o meu filho. Certa feita ele me pediu para ir a uma festinha da escola onde estariam todos os pais dos alunos. Embebedei-me antes de ir para enfrentar a situação constrangedora de maneira menos dolorosa. A professora apareceu e me recepcionou sorridente.

- Oi, Sr. Melo, fique à vontade. É muito bom recebê-lo. O  Júnior estava muito ansioso por hoje, não parava de falar no senhor. É uma graça ele.

E ficou com aquela conversa típica de quem, no fundo, não vê a hora de se livrar da gente, mas tentam demonstrar o contrário. 

Nesse tempo o feioso do meu filho foi se misturar com seus colegas. Dezenas de garotinhas ficavam a sua volta querendo tirar fotos com ele e o abraçavam sorridentes. A professora percebeu meu espanto.

- Ah, as meninas  adoram o Júnior. Falam que vão se casar com ele! Imagina? Nessas idades. Essas crianças são fora de série. Não é pra menos, seu filho é lindo mesmo... Puxou ao pai.

Apesar de bêbado, confesso que fiquei um pouco envergonhado com aquilo. Não parecia um deboche. Então ela me chamou até sua sala. Fui logo atrás seguindo seu rebolado que expressava o tema do nosso assunto.

Ela deitou-se sobre sua mesa com o vestido levantado me encarando e disse que a festa foi só um pretexto para me ver. Disse que tinha uma tara por pais de alunos, mas desde que começou a trabalhar naquela escola só via gente feia, exceto eu.

Após ter lavado minha alma e inflado meu ego, chamei o Júnior para irmos embora. Ele demorou um tempo para se livrar do assédio das coleguinhas e veio correndo. Era mesmo bonitão o meu garoto.

- Já vamos, papai?

Expliquei que não gostava que ele ficasse andando com aquela gente feia.

UMA PONTA DE ARREPENDIMENTO


Foi quando eu estava no shopping com a minha esposa e nosso filho. Ela entrou em uma loja e eu fiquei do lado de fora com a criança no carrinho. Então vi um grupo de pessoas bebendo e sorrindo enquanto eu segurava uma mamadeira que representava a minha crise existencial e decidi que precisava agir rápido. Preenchi um cheque gordo e um breve bilhete. Deixei dentro do carrinho e sai correndo daquele lugar antes que minha mulher voltasse.

No momento em que estou fechando a porta do táxi, ela aparece correndo desesperada com nosso filho no colo. Ela estava gorda e não conseguia ter muita velocidade. Bato a porta e ela começa a gritar aos prantos – como sempre fazia por tudo. Não tive coragem de encará-la e apenas pedi ao taxista que arrancasse. Nesse momento me bateu uma ponta de arrependimento e cheguei a conclusão de que era para eu ter deixado um cheque menor.