PRO DIABO QUE O CARREGUE

Enxerguei ele vindo em minha direção. Estava na outra calçada, então seria fácil eu disfarçar que não o tivesse visto, assim como fazemos quando encontramos um conhecido inconveniente na rua, no restaurante, no ônibus. O pior é quando isso acontece exatamente depois de termos dado uma desculpa justamente para evitar o encontro com a pessoa. Quando se percebe a tempo, até se pode dar uma corridinha e entrar em outra rua. Mas acontece que fui pego de surpresa, e ele me percebeu. Mesmo assim, olhei para o chão e segui. Mas com o canto do olho percebi que ele havia atravessado a rua.
- Cara, não me viu? – perguntou. E falou sério, pois percebi a ingenuidade.
- Mas olha só! - falei.

Eu estava nauseado de ressaca e não havia dormido ainda. Percebi que ele segurava uma bíblia. Então, como mágica, sem eu perceber como aconteceu, ele já estava falando sobre algum conto de fadas que havia naquele livro. Eu suava. Ele tinha um brilho nos olhos. Parecia ter tesão pela palavra de deus. E tinha. Logo, ele deveria sentir tesão por deus. Fiquei pensando nisso sem ouvir o que ele dizia. Senti o embrulho. O azedume na garganta. Vomitei em seus pés. Bastante.

 - Você está bem?- perguntou, sem saber o que fazer.
- Acho que estou... possuído... pelo demônio. – falei, olhando nos seus olhos assustados como de uma criancinha.
- Calma... Deus... – ele falou. Tremia e segurava a bíblia perto de mim como se fosse uma espécie de escudo.
- Não! – gritei com uma voz rouca numa ótima interpretação do capeta. Ele bateu com a bíblia em minha cabeça. Eu bati o pé no chão como se espantasse um cachorro e ele saiu correndo. Provavelmente iria contar para o seu pastor o que lhe acontecera e daria todo seu dinheiro em troca de uma bênção divina.

Um comentário:

M.M. disse...

Me lembrei do conto "O jogador generoso" do Baudelaire.